Crítica Boots: uma série sobre gays no serviço militar que merece ser vista

Já faz alguns dias que há um burburinho sobre a série Boots, da Netflix. Criada por Andy Parker, a atração é inspirada no livro The Pink Marine, que conta a história real do seu autor, Greg Cope White, um homem gay que entrou no Exército dos Estados Unidos em 1979 e foi militar durante seis anos.

Eu particularmente não queria assistir à produção por eu mesmo ser um homem gay (me considero uma pessoa queer agora, mas para facilitar a vida dos leitores digo homem gay) e ter sido militar. Durante mais de uma década, de tempos em tempos eu sofri com pesadelos de que era obrigado a voltar para o 1º Regimento de Carros de Combate, em Santa Maria, onde eu fui primeiro soldado e depois cabo de março de 2008 a fevereiro de 2011.

Não me entendam mal, a experiência não foi horrível e tão traumática assim. Entretanto, o medo constante de minha sexualidade ser descoberta e o fato de viver duas vidas deixam marcas que ficam. Logo, num primeiro momento não quis conferir Boots, mas a chuva de comentários positivos fez com que se tornasse impossível não assistir.

O lado positivo é que a história contada na série da Netflix é de fato muito boa. Abaixo digo o porquê — assim como não pude resistir à atração, não conseguirei ser objetivo neste texto; farei paralelos da experiência vivida na telinha com minha própria experiência no meio militar.

O primeiro ponto a ser abordado é que a série fez algumas mudanças com relação ao livro, como já era de se esperar. Uma significativa que vale ser mencionada é a troca do ano: de 1979 para 1990. Demais mudanças podem ser conferidas aqui.

Na história, Cameron Cope (Miles Heizer), o protagonista gay já cansado de ser vítima de bullying, aceita ir para o serviço militar com seu amigo Ray McAffey (Liam Oh), este hétero. O grande problema é que, à época, era proibido ser homossexual nas Forças Armadas norte-americanas. Logo, revelar sua sexualidade simplesmente não era uma opção para Cope.

Uma das coisas que mais chama atenção no começo é a gritaria desmedida, o excesso de punições, jogos mentais e violência. Estamos falando de uma série que se passa nos anos 1990 nos EUA, enquanto que eu fui militar no fim dos anos 2000 no Brasil. Há uma diferença de local e tempo, mas ainda assim parece muito com o que eu mesmo vivi. Até alguns tipos de punições são exatamente as mesmas.

Apesar de ser um ambiente violento, na minha época os superiores hierárquicos lamentavam que não podiam tocar nos recrutas por causa da Maria do Rosário, que já fora ministra dos Direitos Humanos. Imagino que quase 20 anos antes era muito pior. Assim sendo, a série Boots me pareceu até relativamente leve nesse quesito.

O que eu estranhei é que a produção da Netflix em nenhum momento mostra violência como algo comum entre os recrutas. Talvez não tivesse mesmo lá, mas comigo tinham os famosos “pacotes”, no qual as pessoas se juntavam para bater em alguém, geralmente na bunda para não deixar marcas visíveis, com todo tipo de ferramentas, como facão virado de lado, fio de luz e chinelo.

Como os superiores davam punições coletivas para a tropa se tivesse algum erro individual, era inevitável em algum momento os demais recrutas se voltarem contra o elo mais fraco do grupo e dar pacotes como forma de vingança. No meu pelotão, até mesmo ocorreu o fato de um soldado esfaquear o outro durante um desses pacotes. Conhecendo um pouco os seres humanos, acho difícil de acreditar que algo parecido não ocorresse lá.

Um ponto que gostei muito na série foi os arquétipos dos personagens. Alguns mais brutais, outros se achando superiores, aqueles que são engraçados. A série nos faz rir em vários momentos e isto está a par com que pude ver no quartel. Sempre há aquelas figuras palhaças e cenas de comédia pastelão, como alguém soltar um peido alto durante a flexão e o sargento começar a reclamar (lembro como se fosse hoje dessa cena).

Gostei tanto dos coadjuvantes que achei uma pena Boots não os aproveitar melhor. Muitos não tiveram arcos dramáticos ou arcos bem deixados de lado.

A relação entre o protagonista Cope e o sargento Sullivan (Max Parker), este igualmente gay na série, também é ótima. No meio militar brasileiro, era costume dizer que você é peixe positivo ou negativo de algum superior, caso essa pessoa prestasse mais atenção em ti de maneira a ajudar ou detonar, respectivamente.

Eu mesmo lembro de um dia estar trabalhando dentro do blindado Leopard 1A1 e um tenente que gostava de mim dizer que eu deveria tentar entrar na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).

Sullivan, ao tentar transformar Cope em alguém mais forte, o trata de maneira dura e exigente. Essa é, de uma forma meio capenga, uma demonstração de amor entre fardados.

É também interessante como essa possibilidade de Cope ser gay, apesar de ser algo que todo mundo desconfia, não ser algo geralmente falado entre as pessoas abertamente, com raras exceções.

Para me proteger, eu falava o menos possível sobre a vida pessoal. Isso tornava a minha jornada muito solitária, tanto que um dia esquentei uma agulha no fogão e queimei no braço esquerdo a palavra “alone”. Ao mesmo tempo, eu não era vítima de hostilidades. Mesmo um colega com trejeitos considerados mais afeminados não era incomodado.

Toda essa represa de sentimentos me fez gostar muito de um recurso utilizado na série: de Cope falar com ele próprio, como se fossem duas pessoas. Eu mesmo sentia que era duas pessoas, o Douglas militar e simplesmente Douglas. O segundo e o terceiro ano de quartel, quando eu comecei a me livrar das amarras e namorei homens escondido, trouxeram um estresse enorme.

Demorou muito para eu, por exemplo, conhecer outro militar gay e falarmos abertamente sobre nossas experiências. Por isso, ao menos pra mim, incomoda um pouco a necessidade da série de inventar o personagem Jones (Jack Kay), um recruta gay que torna a jornada de Cope mais fácil. A parte do isolamento é crucial na história, mesmo que todos saibam que definitivamente você não é o único gay no local. É parte do drama, da tensão.

Ao menos Jones serviu para falar uma das maiores verdades que há: o quanto o meio militar é homoerótico. Eu nunca aproveitei isso, até mesmo porque morria de medo de alguém descobrir minha sexualidade, mas tudo no Exército é muito homoerótico. Eu até mesmo dormia às vezes com colega para não passar tanto frio enquanto acampava em missões no campo. Por causa das dificuldades que passamos, é natural que você forme laços fortes com algumas pessoas mais próximas para um ajudar o outro. No fim, eu mesmo me encantei por um ou outro brevemente por causa dessa proximidade grande, acabava confundindo os sentimentos porque tinha alguém com quem contar no meio do caos que é especialmente o primeiro ano de serviço militar.

Logo, há tanto de dores e alegrias a serem exploradas que a série não precisava matar um recruta, por exemplo, algo que não acorreu no livro e pareceu exagero.

Entre muitos acertos e alguns pontos dramatizados demais, fato é que a série é muito importante para trazer luz a um assunto que muito se tenta abafar: a relação entre pessoas queer e o ambiente militar. É um vínculo que sempre existiu e sempre existirá, queiram conservadores ou não.

O que me deixa com o pé atrás sobre uma possível segunda temporada é o aspecto político de Boots. No primeiro ano, foi pincelada a questão do racismo, além da homofobia. Entretanto, por ser um período de treinamento, não havia nada fora daquele contexto. No fim da temporada, Cope vê na TV a guerra no Iraque. De que forma a série vai lidar com o papel atroz que os Estados Unidos exerceram ao longo das décadas ao redor do mundo? Estou curioso para saber.

Nota (0-10): 8

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