Com suas devidas variações, a História está fadada a se repetir.
Em 1989, nos Estados Unidos, terra onde a segregação racial foi uma política de Estado até os anos 1960, era lançado o filme Conduzindo Miss Daisy. Na obra, o ator negro Morgan Freeman interpretava o chofer da mulher branca e judia que dava título à obra, vivida por Jessica Tandy.
No filme, Daisy se mostrava amarga e, em certa medida, cruel. Até os seus últimos dias, Hoke Colburn, personagem de Freeman, foi tratado como um inferior.
Mesmo assim, o filme foi recebido de maneira calorosa e recebeu quatro prêmios no Oscar, incluindo melhor filme. Ao tocar a questão racial apenas superficialmente e fazer da protagonista branca uma heroína capenga de sua era, a película era ideal para Hollywood dar um tapinha nas suas próprias costas e dizer que lutava contra o racismo.
Salte quase 30 anos no futuro. Em 2019, era lançado o filme Green Book. Desta vez, o papel de condutor e conduzido se inverte: Tony, um motorista branco vivido por Viggo Mortensen, é quem dirige para Don Shirley, um musicista negro e queer encarnado por Mahershala Ali.
O que não muda é o papel do branco como herói a ser aplaudido, mesmo com todas as suas falhas. Não é de se espantar que a produção também tenha vencido o prêmio de melhor filme no Oscar, além de outras duas estatuetas.
França, 2024. Estreava no Festival de Cannes o drama musical Emilia Pérez, que conquistou o prêmio de melhor atriz para as quatro mulheres protagonistas: Zoe Saldaña, Karla Sofía Gascón, Selena Gomez e Adriana Paz.
De lá para cá, o filme tem recebido cada vez mais indicações e prêmios, mesmo que seja amplamente criticado pela representação trans feita de maneira muito ruim; por uma visão estereotipada do México; pelo diretor Jacques Audiard, que é francês, nem se dar ao trabalho de pesquisar sobre o país latino; e pelas três protagonistas com maior tempo de tela não serem mexicanas — com especial menção ao sotaque de Gomez, norte-americana sem domínio do espanhol.
Organizações queer têm amplamente abordado o quão problemática é a narrativa da protagonista trans. O filósofo Paul B. Preciado, que é homem trans, inclusive escreveu um duro artigo chamando a obra de racista e transfóbica.
Toda essa contestação de nada tem adiantado. Emilia Pérez está colhendo os louros da forte campanha de marketing levada adiante pela Netflix, que adquiriu os direitos da obra.
Essa desconexão da elite de Hollywood com vozes dissidentes não espanta, todavia. A garota dinamarquesa, filme de 2015, foi amplamente agraciado em premiações, mesmo que ativistas expressassem o quão errado era ter Eddie Redmayne, um homem cis, interpretando uma mulher trans.
Seja no caso de Conduzindo Miss Daisy, de Green Book, de Emilia Pérez ou de tantos outros, o que a indústria cinematográfica do norte global quer é uma inclusão que agrade não as pessoas hostilizadas, mas as pessoas brancas, heterossexuais, cisgêneras e ricas.
Não importa tanto a representatividade ou uma mensagem social consistente e forte. O importante é trazer alívio à alma de quem já foi ou ainda é, em alguma medida, opressor — seja diretamente oprimindo ou fazendo parte de um sistema que hostiliza e exclui.
O triste é lembrar que daqui a pouco viveremos outro ciclo semelhante no qual os corpos de pessoas à margem da sociedade serão usados para que os mesmos de sempre aplaudam a si próprios e entretenham-se com as mazelas alheias.
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