Há produções televisivas que você desiste de assistir já no primeiro episódio, pois não gostou de cara. Tem aquelas que você dá uma chance, mesmo sem ter a certeza de que gosta ou não. Há aquelas boas, mas que as pessoas assistem aos poucos, com calma. Também tem certas produções, mais raras, que são simplesmente viciantes.
Baby Reindeer, minissérie fenômeno da Netflix, encaixa-se no último caso. A atração é baseada em fatos reais, mais especificamente na vida do seu próprio criador, Richard Gadd, que também produz, protagoniza e escreve os 7 episódios. O trabalho é uma adaptação de duas apresentações suas nos palcos — uma é homônima e a outra se chama Monkey See Monkey Do.
Se você, assim como eu, não gosta nem de assistir a trailers para não ter spoilers do que virá e não viu a minissérie ainda, aconselho não continuar o texto, mais focado em uma análise compartilhada com quem já viu o material.
Como não sabia do que Baby Reindeer se tratava — além da presença de uma stalker —, confesso que o primeiro episódio não pareceu tão promissor, ainda que seja bom. Com foco apenas na introdução de Martha (Jessica Gunning) na vida de Donny (Gadd usa um nome fictício aqui), imaginei que os capítulos seguintes seriam apenas um aumento da tensão até culminar na cena da ida na polícia, seis meses depois.
Como eu estava enganado.
Já no segundo capítulo, o show apresenta uma dimensão nova à história com a introdução de outra personagem: Teri (Nava Mau), mulher transexual e interesse amoroso do protagonista. Só este trecho da história já poderia render um TCC sobre a vergonha que Donny sente ao se relacionar com uma mulher que não é cis. Dentro da comunidade LGBTQIA+, em particular tratando-se da letra T, o preconceito pesa muito nas relações de afeto, pode até mesmo destruí-las.
No terceiro capítulo, a tensão já escalona exponencialmente e nos empurra, no meio do trajeto, àquela cena inicial.
Então o enredo ganha mais uma camada com a história do abuso sexual sofrido por Donny/Gadd. Toda a interação que ele tem com Darrien (Tom Goodman-Hill), homem mais velho com perfil predador, é dolorosa.
Formado o quadro de violências, temos uma história mais focada nos efeitos de tantos abusos do que no caso policial em si. Além da performance excruciante digna de prêmios, o brilhantismo de Gadd reside na sinceridade dos seus sentimentos e na franqueza com que trata o tema.
Confessar que a perseguição de Martha o excitava, fazia com que conseguisse transar com Teri e posteriormente se sentia mal com isso é um dos momentos que refletem a crueza do que é viver.
Mesmo sabendo que era vítima de abuso, a volta de Gadd para o apartamento de Darrien é outro ponto impactante. O protagonista cita a promessa de portas se abrindo na carreira, mas talvez tenha deixado de verbalizar algo que só conseguiu com Martha: o prazer decorrente da violência sofrida.
Uma das partes mais perversas de sofrer um estupro é a culpa de, em determinado momento, ter excitação com o ato — não quero generalizar a situação e tampouco afirmar que definitivamente esse era o caso de Gadd, mas ajuda a explicar sua posterior dúvida com relação à sexualidade.
Ocorre que dizer que uma violação tão grave do seu corpo e que traz tanta dor também te trouxe prazer parece que retira a culpa do abusador, o que de maneira alguma é o caso. É só mais uma prova do quanto o nosso próprio corpo pode nos trair e da complexidade de nossas existências.
Acaba que este é o grande achado de Gadd: fazer perguntas, mesmo que nem sempre tenha as respostas. A minissérie pode até ter terminado, mas a jornada do seu criador não. Há toda uma vida pela frente para questionar, denunciar, lutar, fazer rir, perdoar a outros e, principalmente, a si mesmo.
Nota (0-10): 9
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