A primeira cena é chocante. Durante a Revolução Cultural Chinesa liderada por Mao Tsé-Tung (1893-1976), um professor é espancado até a morte por jovens integrantes da Guarda Vermelha. Enquanto o homem é agredido, sua filha assiste a tudo desesperada no meio da multidão.
O começo da série 3 Body Problem, da Netflix, ficcionaliza um passado sangrento real para dar partida há uma trama mirabolante que vai muito além deste mundo.
A nova sensação do universo televisivo é uma adaptação da trilogia literária de ficção científica Remembrance of Earth’s Past, do escritor chinês Cixin Liu. O primeiro livro da série, The Three-Body Problem, é o mais famoso deles — vencedor de inúmeros prêmios literários e não por menos fonte de inspiração para o nome da produção televisiva criada por David Benioff, D. B. Weiss e Alexander Woo.
Havia uma enorme curiosidade sobre o resultado desta adaptação, já que Benioff e Weiss foram os responsáveis por Game of Thrones, um dos maiores fenômenos da TV de todos os tempos. Uma pontada de apreensão também, pois é praticamente unânime a afirmação de que a última temporada da série passada principalmente em Westeros foi ruim — algo concordado pelo Temp, que tachou o oitavo ano de GoT como uma bela porcaria.
Para quem acredita em uma entidade divina do cristianismo, podemos classificar o resultado da nova empreitada da dupla desta forma: nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno.
Eu não li as obras de Liu — algo que não importa muito numa crítica de adaptação já que estamos avaliando o conteúdo levado para as telinhas —, mas nos últimos dois dias recorri a muitos textos que vão desde os conceitos científicos apresentados, passando pelas diferenças entre livro e série até o legado deixado pelo maoismo.
Sim, questões geopolíticas influenciam na ficção e é bacana estar atento a isso. De fato, a atração já está causando conflitos mesmo dentro da China, onde não há Netflix e a população precisa recorrer a meios diversos para ver o material. Conforme este texto da CNN, nacionalistas chineses teriam ficado bravos por terem permanecido com a parte nada nobre da história, que é a repressão estatal e o pedido de socorro a alienígenas malvados, enquanto a parte mais nobre, que é tentar salvar a humanidade, foi inteiramente deslocada para o Reino Unido.
Num primeiro momento, também entendi esse ponto da adaptação como bem problemático, mas precisamos fazer algumas ênfases de contraponto para mostrar que o cenário é um tanto mais complexo.
Primeiro, Liu não é opositor ao Partido Comunista Chinês, tanto que defendeu sua política contra minorias muçulmanas. O próprio autor foi consultor no trabalho televisivo e deu a sua bênção para o material.
Para além disso, Ye Wenjie (Zine Tseng na versão jovem, Rosalind Chao na versão mais velha), que interagiu com os alienígenas mesmo ciente do perigo, no momento uma prisioneira do regime de Mao, leva adiante seu plano de culto a divindades extraterrestres com a ajuda de Mike Evans (Ben Schnetzer na versão mais jovem, Jonathan Pryce na versão mais velha). Se você for problematizar um pouco, verá uma perseguida do Estado chinês se aliando a um ocidental para tentar salvar a humanidade, mas fazendo um estrago muito maior — os Estados Unidos em especial sempre foram bons nisso, não é mesmo?
Tem também o fato de que há mais personagens asiáticos como protagonistas, a exemplo de Jin Cheng (Jess Hong), a mente brilhante por trás do plano de defesa do planeta.
Por fim, todo o período de Mao é de certa forma controverso mesmo dentro da China. Um sobrevivente da época, apesar de defender o antigo líder, diz que “mesmo ideias na quais acreditamos podem nos trair se o poder para exercê-las permanecer irrestrito e ilimitado”.
Digo isso tudo para vermos como podemos entrar numa espiral de argumentos e contra-argumentos. Todavia, continuo achando que deslocar todo o presente para o Reino Unido é uma ideia ruim, principalmente por outro motivo: os Oxford 5.
Estamos falando da narrativa de um conflito de escala interplanetária, mas magicamente todos os principais humanos envolvidos na trama são amigos. Não soa nada crível.
Jin é namorada de Raj (Saamer Usmani), que participa da operação militar; também é amiga de Auggie (Eiza González), que desenvolve as potentes nanofibras; de Will (Alex Sharp), que está com câncer e terá papel importante na narrativa; de Saul (Jovan Adepo), que vai de um nada na trama para alguém muito importante; e Jack (John Bradley), o rico do grupo.
Já que as consequências do iminente ataque dos San-Ti afetam todo o planeta Terra, bem que os papeis de destaque poderiam vir de mais partes do globo. As próprias cenas com Thomas Wade (Liam Cunningham) na defesa da humanidade parecem ter uma escala insignificante dado o perigo.
Outro ponto ruim é o excessivo poder dos Sophons, supercomputadores feitos de próton que extrapolam as três dimensões conhecidas por nós e permitem uma interação momentânea entre a Terra e os San-Ti, que já abandonaram o seu planeta e estão vindo para cá.
Se os alienígenas podem fazer com que nós vejamos o que eles bem quiserem, além de poderem interferir em câmeras de segurança, em voos, em aceleradores de partículas e demais apetrechos, por que não matam logo todos os humanos que não são fiéis a eles? As mudanças climáticas causadas por nós são uma realidade em 3 Body Problem também, algo mencionado por um personagem. Logo, os San-Ti estão conscientes que estamos em velocidade máxima de destruição do mundo que eles planejam habitar daqui a 400 anos.
Feitos todos esses apontamentos, é preciso salientar isso como o principal diferencial da série. Ou seja, essa vontade de consumir mais conteúdo, tentar entender teorias científicas, história, fazer muitas perguntas e viver a atração para além do que é exibido ali.
Os oito episódios, que adaptam o primeiro livro e partes do segundo e do terceiro, são instigantes e fazem você querer ver o resto logo. Para quem gosta de ficção científica, é um prato cheio. Foram gastos milhões com a produção e isso é perceptível no resultado.
Há tanto mais que poderia ser discutido, mas paro por aqui. E você, o que achou?
Nota (0-10): 7
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